segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Fragmento de um livro de memórias interrompido

VII
O que chegou até mim dos meses em que anotei meus sonhos? Naturalmente, apenas as imagens (narrativas) tortas, vertiginosas ou aquosas dos últimos. Elas varreram todos os demais acontecimentos e se cristalizaram num estrato furta-cor. Lá está o labirinto vertical – um morro com trilhos cheios de cascalhos – onde teria rompido meu joelho e esperado ansiosamente o sangue escorrer (o que não aconteceu, para meu grande incômodo). Lá também se encontram as praias inalcançáveis, as piscinas lamacentas, e a longa avenida onde as pessoas caminhavam despreocupadamente com água até os tornozelos. Em uma mata, zanzava incessantemente em busca/em fuga de um par de olhos desincorporados escondidos entre arbustos. Em uma espécie de canyon, não conseguia voltar ao entreposto e continuava a zanzar madrugada a fora, me distanciando cada vez mais de onde deveria estar. 



4 comentários:

  1. Esses fragmentos, principalmente os “aquosos”, me fazem lembrar de algumas imagens maravilhosas em “one take” do longa “Stalker”, de Andrei Tarkovsky. Águas correntes que mostram o tudo da vida, de bom ou de ruim, mas que agora está submerso, e somente os reflexos são mostrados de forma cristalina pelas cores da água, seja na mata ou até mesmo nos túneis negros e infindáveis daquela casa arruinada pela guerra humana. Os três seres vivos também esperavam ansiosamente debaixo daquela cascata de chuva por algo (o fim?)... Mas, não, Godot realmente não chega. Fragmentos longos que vêm à memória amiúde...

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  2. Obrigado, Luiz! Lisonjeado com a comparação a Tarkovsky! Sem palavras...

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  3. Você realmente conseguiu absorver a atmosfera tarkovskiana, como bem lembrou o Luiz! Acredito que mais ou menos como Eliot e Pessoa são para mim, Tarkovsky é pra você, o que é realmente sensacional, rs.

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  4. Concordo, Pedro! O diretor é uma referência imediata para mim quando se trata de construção de imagens poéticas e da evocação de sensações... E com certeza Eliot e Pessoa foram sempre muito felizes nesses dois campos. O exemplo pode até não ser muito original e sei que sabe tudo de cor: "The yellow fog that rubs its back upon the window-panes/The yellow smoke that rubs its muzzle on the window-panes/Licked its tongue into the corners of the evening/Lingered upon the pools that stand in drains,"....

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